Eu gostaria
de ter sido musicista. Eu não
deveria ter sido escrituária. Eu escrevo o que me ditam. Eu não sigo os meus passos.
Estou de frente à uma folha de papel em branco reproduzindo palavras que não
são minhas. Estou sozinha. Já tinham me avisado que o ser humano é só. Eu não acreditei,
eu ri, eu já tive sonhos. Hoje eu não ouso.
Eu me mato
aos poucos. Corto em camadas os meus pulsos em baforadas nojentas de cigarro.
Joguei tudo fora. Desisti. Acreditei em um caminho de pedras amarelas que me
levaria de volta para casa, um lugar que acreditei que fosse meu. Me iludi. Não
tenho lugar. Volto pra cama todos os dias sem voltar.
Meu poucos
amigos são os que fiz na infância. Ficaram armazenados em um antigo album de
retratos guardado no fundo do armário, junto a minha vela de primeira comunhão
e aos velhos óculos de meu pai. Fui juntando as lembranças. Fui juntando pó. E
só com elas ainda sinto. Por isso vivo.
É estranho
não sonhar. Olho para frente e vejo apenas essa folha em branco, essa velha
máquina de datilografar aguardando as frases a serem ditadas. Nem as palavras
são minhas.
Eu tenho
vergonha da coragem que eu não tive. De ter traído os meus princípios. De não
ter agido. De não ter dito não. De não ter me vingado com facas de todos os que me
iludiram. De não ter revidado tapas (bateu levou). De ter aceitado mentiras, de
não ter sido feminista, de não erguer bandeiras em frente à casa como um
Americano patriota. Eu tenho vergonha das minhas unhas roídas, da minha velhice
precoce, do meu fracasso. Eu tenho vergonha do meu salário, e de pagar imposto
no Brasil. E eu tenho, acima de tudo, medo. Medo de ter desistido, de chegar
aos 50 pensando no que eu poderia ter sido de bom ao mundo antes que ele se
tornasse essa carcaça de mentiras, onde sonhos se transformam em comerciais de
banco e vídeos virais. Medo.
Eu deveria
ter sido musicista. Ter tocado piano, ter cantado, ter arriscado notas vulgares
em qualquer violão. Eu deveria ter acreditado , ter investido, mas eu achei um
outro caminho e dei valor às coisas erradas. E isso se aprende tarde. A vida
deveria vir com amostra grátis de cada escolha, pelo menos uma, aquela, a derradeira,
para ao menos uma vez poder voltar atrás.
Mas olha,
daqui pra frente…
- - Miranda
- escuto meu nome. - Vamos
começar?
- - Sim
senhor – é o que digo.
"Quando o
lobo estende a mão à Chapeuzinho ela confia, ele sorri. Mas quais são suas
intenções? Por que lhe cheira? Por que lhe sorri? Por que lhe olha? Chapeuzinho
estava morta na sua própria ingenuidade. Não foi ele quem a devorou foi a realidade.
Ele sorria para lhe comer. Ele a recebia com doces para lhe comer. No fundo
tudo o que fazia ou falava era para lhe comer. Chapeuzinho está velha, não é
mais menina. Fuma cigarros e coleciona cartas antigas. Vive do passado. Do que
pensou que encontraria na estrada de pedras que lhe sorria. Ela achou que
voltaria para casa em um belo caminho com borboletas azuis. Está morta. Sem
casa, sem príncipe, sem passado, sem Salvador."
-
- Obrigada
Miranda, até amanhã. E vê se ajeita esse cabelo, você está parecendo uma tia
velha com preguiça de tomar banho. – ele disse. Eu ignorei.
Era tarde,
dezenove horas de um dia longo. Fecho a máquina. bato o ponto. Assino. Sorrio
amarelo para todos os lobos. Volto, ligo a Tv, choro com a propaganda e como um
biscoito.