sexta-feira, 31 de março de 2017

O Homem Perfeito e Meu nome é Maria.


Textos Criados para o Misancene, projeto dos queridos Michel Blois e Julia Tavares! Uma honra! Foi encenado pelos atores Bruno tasca e Fernanda nobre! Lindo ver atores tão incríveis dando vida a um texto. Muito obrigada!





O HOMEM PERFEITO
Paula Braun


(Um homem aparentemente incrível, bonito, querido, gentil. Se apresenta)

Meu nome é José, e eu sou o homem perfeito. Eu sou o homem que você viu nos contos da Disney, eu sou aquele que gritava embaixo da torre da princesa, que te acordou com um beijo enquanto você dormia enquanto você se derramava em lágrimas, ainda pequena, ao me ver. Eu sou aquele que no filme te busca de carro dizendo que quer se casar com você. Eu sou aquele que as mães querem ter como genro para confeccionar puloovers.  Xadrez, por favor, gola V. Eu sou aquele que te dá a mão quando você grita, que te dá suporte quando você chora, que te dá carinho quando você chega cansada e que te mete a mão na bunda. E você gosta. 

Eu sou o homem que te pediu em casamento no restaurante mais fino  do Rio de Janeiro, ainda com gosto de champanhe na boca, champanhe caro, seu preferido.  Você, inebriada pelas borbulhas me disse sim, madura do alto dos seus 27 anos linda num vestido vermelho que eu te dei. Eu sou aquele que te esperou no altar, te levou pras maldivas, te comeu sem cuidado. Aquele que te deu sustento pra que tivessemos nada menos que tudo, perfeitos. Sou o cara que te levou a paris pela primeira vez. Eu te dei tudo o que eu podia e ainda mais. Eu sou legal! Eu tenho um milhão de amigos, eu sou um cara compreensível. Eu sou, eu sou eu sou eu fui eu era eu sou.  

Você não pode jamais dizer que não teve ao lado um homem bondoso como eu. Eu não entendo quando você me dizia que eu estava errado. Logo eu? Eu que posso te dar um apartamento e ainda pagar um design pra deixar ele mais bonito que nos filmes de solteirões americanos que morrem no final pra fazer drama. Eu te levo ao teatro pra ver o Fabio Porchat, pra que você sorria, eu amo o branco dos seus dentes. Eu amo o branco da sua pele, o seu cheiro  e o vazio profundo dos seus olhos.  Eu posso te dar jóias, te dar um emprego, te dar tudo. O que mais você pode querer? 

E eu, alem disso tudo, cuido da natureza, sabe? Eu fecho o torneira, eu apago a luz. Eu tenho um escritório sustentável no centro da cidade. Eu vou todos os dias de bicicleta pela lagoa e posto uma selfie, sempre no mesmo lugar, com a mesma luz porque ela me valoriza. E o bíceps. Eu tenho um curso de fotografia que fiz em Londres, aliás, fiz fotos lindas sua, no campo, no alto de um prédio, deixamos ela PB pra que não vissem ( rindo) a sujeira do centro, você lembra? Você girava eu clicava, você parava e eu te comia, e de novo, e bagunçava o seu cabelo. Eu te amei mais do que qualquer homem, jamais alguém te amará como eu, jamais. Jamais alguém te comerá como eu. Meu pau te ama.

 Mas vamos deixar o amor para o final, o amor, nossa redenção e nosso maior pecado.

(neste momento o homem abre um vinho e serve dois copos. Pode colocar uma música e dançar como se estivesse acompanhado. Canta junto. Fica entre um homem extremamente romântico e enlouquecido.)

JOSÉ - Lembra dessa musica? Dançamos na lua de mel, você derrubou os copos da mesa ao lado, nas Maldivas. Eu dizia que essa musica era sua, que você a tinha inventado. (ri. Percebe-se o quanto sente falta dela)

(Paralelo a essa ação arruma dois lugares na mesa. Coloca um vaso no centro com uma flor vermelha). 

Sua ausência jamais será sentida por mim, querida. Se é isso o que você deseja tendo partido. Eu lamento. É o que me resta, lamentar a sua ausência, justificável eu diria pela paixão que te afoguei. Eu sou um homem bom, passivo, respeitável, ciente das obrigações sociais, eu sou um homem de bem, um bom contribuinte, eu colaboro com a receita federal. Um brinde ao amor, essa engrenagem maravilhosa que nos tira o sono, nos faz suar, abrir garrafas de vinho e que nos tira o sono mais do que festas barulhentas de vizinhos com filhos adolescentes... esse amor que salva  tanta gente, que liberta, que inspira poetas, esse amor do desassossego, cor rubi,  que me levou, eu o homem perfeito a te bater, te chutar, te estrangular, te estuprar, te matar. Eu, perfeito, te matei e a culpa é da sua imperfeição. Sua culpa foi não me amar como eu mereço. Sua culpa foi nunca ter existido só para mim. Mas hoje sim!!!  Eu tenho a impressão de que a qualquer momento você vai entrar por ali com aquele seu moletom branco, rindo como no dia dos copos, plena, e vai se sentar aqui pra beber esse vinho que você adora. Que você vem em missão de paz pra me dizer: “você tinha razão, eu te amo, vamos ter um filho?” 

O pior castigo de um homem como eu não é a cadeia, porque dela eu me livro fácil, repito, sou um homem de bem e moro num pais sem lei. Eu sairia e teria um emprego, fato. O meu pior castigo também não é de todo a sua ausência, porque nas lembranças eu me agarro e no vinho tinto eu me sufoco toda a vez que elas vem. O pior castigo, não é a falta que você me faz por não estar aqui, não é a falta do cheiro do seu espaguetti a carbonara sem ovos sem bacon e sem glúten. O pior castigo é o relógio, essa bomba essa, essa, (busca a palavra) coisa que não para nunca, mesmo se quebrar, mesmo se eu o lançar janela afora, sempre terá outro a frente, com pilhas, sem pilhas, no celular. O relógio não para, o tempo não perdoa e eu vou envelhecer. E eu vou ficar velho sem vc. 




MEU NOME É MARIA
Paula braun

(a mulher do texto anterior. A mulher levada pela sociedade a casar com um homem aparentemente incrível, porem violento. Maria está morta e fala ao seu assassino. O texto começa assim que termina o outro.)

Não me fale sobre o amor, homem. Me fale de suas qualidades infinitas, de suas mãos que senti pesadas me quebrando o maxilar naquele dia de outono em que chovia. Fale sobre como é ter crescido entre os seus, entre os grandes de bem, entre aqueles que sempre te deram a mão e te puxaram na subida. Fale, homem, fale. Fale sobre como é calçar azul e correr, sobre como é bater o vento na cara enquanto te criam assim, livre, pronto para desbravar o mundo, mas não, não fale sobre o amor. Do amor você não sabe. 
Quando me vi nos teus braços você era maior, ao menos eu achava, te apresentaram, o homem perfeito “vais amar conhecer ele” disse a amiga, “que homem maravilhoso” disse a mãe, “terias coragem de dizer não?” disseram todos. Eu tinha em mim as princesas nas torres, e os cavalos brancos de raça, e os filmes de amor da sessão da tarde, a escola me colocando na torcida e nunca chutando a bola, cor de rosa, bala de mel, delicadezas, e só me vinha o Sim, no corpo o sim, na mente o sim, até que na boca o sim, eu não sabia de outro jeito, não poderia, “teria coragem de dizer não?” Disse sim. Maldito sim. 
E então  vieram as maldivas, e vieram as champanhes, vieram os vestidos e vieram as rotinas. Sexo sim, mesmo quando eu dormia. Vieram os presentes sempre um prêmio. E você, o maior de todos  “Que sorte você tem de ser casada com ele” “Nossa que homem de ouro,  que homem bonito!”  “Tão pleno, tão forte, tão engajado”. “Tão alto, tão talentoso, tão querido”. “Ele corre todo dia? Nossa!” “Conta pra gente, ele é bom de cama?” “Ele te come bem? Come, né?” “Ele que te deu esse relógio mara que não para?” “Ele fode com força?” “Qual a sua marcar de batom vermelho? Ele deixa?” “Ele te prefere de quatro ou deitada?” “E os filhos? Quando vem? Você vai ficar velha” “Você cozinha pra ele? Não acredito que é ele quem cozinha!!! Menina, que louca, você não sabe fritar um ovo? Não brinca!” 
E eu ali, muda, a vida inteira muda, sem gritar, sem fugir, sem te encarar de frente, com o sim marcado como em gado, eu o gado. A vida inteira em busca de algo sem saber direito o quê, a vida inteira engasgada, engolindo pregos e perdendo dentes, sufocada como em um sonho onde se quer gritar e a voz não sai, em busca da única palavra que poderia ser dita, libertadora, curta: NÃO! Eu gritava não é não. E a voz não saia. Não vinha. Então eu sorria. 
(pausa)
Eu sorria e você não entendia. Então batia. O homem perfeito batia porque achava que eu sorria demais. Eu achava normal, ferida cura, minha carne é espessa, minha casca dura. Até aquele dia, quando senti que a morte era a saída, eu sorri mais, e te chamei ainda, ali, antes de ir e te disse, como faca que entra macia sobre a tua pele bronzeada, o oposto da tua intocada perfeição, aquilo que você nunca admitia, baixinho ainda te disse: vais morrer um dia. Frouxo, babaca, Machista. 

(Aqui  se dá de fato a passagem. Morre também a personagem e nasce a atriz que fala em nome de todas. )

Meu nome é Maria mas poderia ser outro.  Sou branca, hétero, negra,  trans, homo. Sou criança, velha e prostituta. Santa e filha da puta. Sou Elza soares, Carmem Miranda, Eliza Samudio. Levanta a Mao pra mim e seremos 10 contra você. Porque força não se mede com o tamanho do bíceps, ou com o numero de abdominais, força a gente mede com luta. Quando te levantares contra uma seremos muitas. Não me pegue pelo braço, odeio que me peguem o braço, odeio que me ditem caminhos, que me digam o correto, que me digam “não faça”. Eu faço! Porque eu sou fogo que corta o céu, sou água que seca a chuva, sou vento que move paredes. Não me chama de neném, me chame pelo nome. Sou Yara, Yansã e oxum! Tenho a fúria das águas e os trovões, minha arma é também a minha calma. Sou Bethanea, Frida Kahlo, Dilma Roussef e Dona Canô. Baixa o tom da sua voz, baixa a sua mão, baixa a sua cabeça e me chama de mãe. Mesmo que eu não seja porque eu não quis ou pude, me respeita. Pede perdão. Pelo soco, pelo tiro, por ter me dado aos cachorros, por ter me colocado na beira da estrada antes mesmo de eu saber o que era um pau duro, por ter me vendido por menos de 50 reais. Eu não ando só. Nunca mais.  Eu falo alto porque eu quero, não me interrompa toda a vez que eu vou falar! Peca desculpas por me privar de ser quem eu sou, por me passar a mão na bunda sem eu pedir, por falar de mim em mesa de bar como se eu não fosse igual a você, como se eu não tivesse vontade igual a você. Peça desculpas por eu ter sido o “autor desconhecido” ao longo da história, por não poder assinar meu nome, por ter sido queimada. Não tenho medo, eu sangro. Enfia no cu o seu preconceito, enfia no cu a sua falta de caráter, o seu achar normal ser assim. Enfia o tamanho do seu pau no cu, ele só diz respeito a você. Me chama de histérica, é só o que te resta. Eu sou Nise, sou Joana Darc e Madame Popova. Eu nunca mais serei uma. Meu nome é luta.