Celular toca a trilha do Darth Vader. Coração gela. Não é nenhuma invasão intergaláctica, é a lista de compromissos do dia. Entre trabalho, médico do filho e retirada de documentos (por quê tanta burocracia?) o cabeleireiro. Confiro o último post do colega, do amigo, do conhecido do primo, da lista de 1987 amigos onde mais da metade eu mal sei o nome ou imagino quem seja. “Beijo me adiciona” (o novo “me liga”) e na rapidez de um clique você descobre que a pessoa do evento de ontem está agora lavando a louça de hoje. Com glamour, claro, estilo pin up: prendada porém liberta (viva o anticoncepcional e o sutiã na fogueira).
Cansada corro para o espelho e percebo o cabelo batendo no teto, as bolsas dos olhos mais polpudas que qualquer Dior e todas as marcas e sinais do rosto mais visíveis que célula em microscópio da NASA. Vontade de se enfiar sob a torneira gelada e ficar ali por meia década, o que seria inapropriado visto o desperdício de água, de tempo, de sabão, de coisas sociais, ecológicas e politicamente incorretas. Jogo um filtro “valência” no rosto e abro um Bom dia” suntuoso ao lado do café da manhã na rede de fotos do celular que já apitou mais umas quatro vezes. Que dia lindo! #perfectday
“Bom dia Filho! Papai já saiu! Vem tomar seu café da manhã”, e ele me olha, atinge e desarma. “Vem aqui meu pequenino” e ele se abre num sorriso maior que a sala, que o sol, que o mundo inteiro. Se joga no meu colo forçando um pouco mais à esquerda a minha lombar. Toca novamente o hino do Darth Vader como se fosse eco que se perde no vale. Por um instante esqueço. No instante seguinte alcanço o aparelho e começo a responder digitando com uma mão enquanto como. O tempo é um relógio que não pára e por mais que atrase de vez em quando a gente corre para ajustar os ponteiros. “Meu relógio é digital, não atrasa nunca”. Minha vida também.
E eis que subitamente os olhos cerram, e coloco pra fora o ar que mal tinha colocado para dentro, tusso como se fosse o tossir a razão de toda a minha existência. Ajeito o filho na cadeira perdendo um pouco da visão. Maldito cereal sem glúten, leite, milho, gosto, a migalha errada no lugar errado e vou me sentindo roxa, azul, quase preta, “onde está o meu ar? Eu compro, pago, pode ser depósito online?” Vejo o filho comendo um pedaço de queijo sem entender o que mamãe fazia ali, tossindo sobre as migalhas. Dramática pensei: morri. Levantei e puxei o ar com força, como quem grita, como quem precisa e se lembra que enfim, respira. Respiro. Ufa.
Darth Vader de novo. Jogo o Darth amado dentro do vaso de tulipas. Lacrimejando ainda, observo como se passa a manteiga no pão. Ou como o filho tenta passar a manteiga no pão com seu dedo pequenino furando aleatoriamente a massa amarela e mole. Logo em seguida penso em como se tira a manteiga do pequeno, da mesa, do sorriso, do braço...
Sorrio um pouco e reparo pela primeira vez no raio de luz que entra pela fresta da vidraça. Penso na foto linda que poderia postar, mas o grito da criança me chama e eu percebo que agora existe uma fralda pra trocar. Manteiga, fresta, fralda. E percebo que a vida é um tanto mais lenta, que em casa entra vento e que de tudo hoje, apenas o médico, nem o cabelo. A tosse foi, o ar ainda entra lento, o celular continua boiando entre as tulipas e esse é o lugar que me percebo, na migalha, no pequeno. “Esqueci de respirar durante todo esse tempo” e corro pela sala mesmo, meio desajeitada com o tapete que escorrega. Filho acha graça, cai, e deixo um pouco o resto para o porvir. “Só hoje, eu juro” delícia esse tal de porvir.