sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Sobre as migalhas.


Celular toca a trilha do Darth Vader. Coração gela. Não é nenhuma invasão intergaláctica, é a lista de compromissos do dia. Entre trabalho, médico do filho e retirada de documentos (por quê tanta burocracia?) o cabeleireiro. Confiro o último post do colega, do amigo, do conhecido do primo, da lista de 1987 amigos onde mais da metade eu mal sei o nome ou imagino quem seja. “Beijo me adiciona” (o novo “me liga”) e na rapidez de um clique você descobre que a pessoa do evento de ontem está agora lavando a louça de hoje. Com glamour, claro, estilo pin up: prendada porém liberta (viva o anticoncepcional e o sutiã na fogueira).
Cansada corro para o espelho e percebo o cabelo batendo no teto, as bolsas dos olhos mais polpudas que qualquer Dior e todas as marcas e sinais do rosto mais visíveis que célula em microscópio da NASA. Vontade de se enfiar sob a torneira gelada e ficar ali por meia década, o que seria inapropriado visto o desperdício de água, de tempo, de sabão, de coisas sociais, ecológicas e politicamente incorretas. Jogo um filtro “valência” no rosto e abro um Bom dia” suntuoso ao lado do café da manhã na rede de fotos do celular que já apitou mais umas quatro vezes. Que dia lindo! #perfectday
“Bom dia Filho! Papai já saiu! Vem tomar seu café da manhã”, e ele me olha, atinge e desarma. “Vem aqui meu pequenino” e ele se abre num sorriso maior que a sala, que o sol, que o mundo inteiro. Se joga no meu colo forçando um pouco mais à esquerda a minha lombar. Toca novamente o hino do Darth Vader como se fosse eco que se perde no vale. Por um instante esqueço. No instante seguinte alcanço o aparelho e começo a responder digitando com uma mão enquanto como. O tempo é um relógio que não pára e por mais que atrase de vez em quando a gente corre para ajustar os ponteiros. “Meu relógio é digital, não atrasa nunca”. Minha vida também.
E eis que subitamente os olhos cerram, e coloco pra fora o ar que mal tinha colocado para dentro, tusso como se fosse o tossir a razão de toda a minha existência. Ajeito o filho na cadeira perdendo um pouco da visão. Maldito cereal sem glúten, leite, milho, gosto, a migalha errada no lugar errado e vou me sentindo roxa, azul, quase preta, “onde está o meu ar? Eu compro, pago, pode ser depósito online?”  Vejo o filho comendo um pedaço de queijo sem entender o que mamãe fazia ali, tossindo sobre as migalhas. Dramática pensei: morri. Levantei e puxei o ar com força, como quem grita, como quem precisa e se lembra que enfim, respira. Respiro. Ufa.
Darth Vader de novo. Jogo o Darth amado dentro do vaso de tulipas. Lacrimejando ainda, observo como se passa a manteiga no pão. Ou como o filho tenta passar a manteiga no pão com seu dedo pequenino furando aleatoriamente a massa amarela e mole. Logo em seguida penso em como se tira a manteiga do pequeno, da mesa, do sorriso, do braço...
Sorrio um pouco e reparo pela primeira vez no raio de luz que entra pela fresta da vidraça. Penso na foto linda que poderia postar, mas o grito da criança me chama e eu percebo que agora existe uma fralda pra trocar. Manteiga, fresta, fralda. E percebo que a vida é um tanto mais lenta, que em casa entra vento e que de tudo hoje, apenas o médico, nem o cabelo. A tosse foi, o ar ainda entra lento, o celular continua boiando entre as tulipas e esse é o lugar que me percebo, na migalha, no pequeno. “Esqueci de respirar durante todo esse tempo”  e corro pela sala mesmo, meio desajeitada com o tapete que escorrega. Filho acha graça, cai, e deixo um pouco o resto para o porvir. “Só hoje, eu juro” delícia esse tal de porvir.

terça-feira, 23 de julho de 2013

MARISTELA.

Nada mais do que eu disser daqui pra frente sairá da minha boca.

Não consigo entrar no molde que tua mão divina me prometeu. Enfrento fila de banco, vou à padaria, bato perna pra encontrar o menor preço, me descabelo, me desconjuro diante do espelho, não passo protetor solar todo dia, sorrio de boba, meu cabelo não tem forma, minha unha do pé está preta, minha unha do dedo está comida, tenho o corpo imperfeito, unha encravada, umbigo disleixo,  sorriso torto, barriga d’água, pé cascudo e dente quebrado. Tenho preguiça de me depilar, tenho angústia ao acordar, tenho medo de não render, tenho sono pra esquecer  injúrias. “Sorria pra foto, pequena, o mundo quer ver a tua felicidade”. Mesmo contrariada eu sorrio e entrego o meu pescoço numa bandeja de camelô. “Ta linda”, amarelo, “vira um pouco a tua esquerda” olhos marejam, “só mais uma” e um flash de luz reina cegando-me.



Não sofro por bolsa de grife, não faço cabelo no salão das beldades, não sou “uma fofa”.  Sou aquela que grita e põe tudo a perder. Arroto em mesa de restaurante fino, falo pouco, não sou obrigada a fazer social com quem nunca me viu, me conheceu, me tocou de verdade a mão. Nunca diga que da minha boca saiu  “sou magra mas é genética” (raramente é), “sou calma e carinhosa” (perco as rédeas de vez em quando), “foi um presente” (tenho os meus méritos). Se eu levo um tapa eu dou outro. Se caio levanto. Se me derrubam eu rio na próxima queda que não será a minha.  A perder? Nada. A ganhar? Muito menos. 

Eu quero aquilo que ninguém viu, que chega onde eu não conheço. Que fede de doer, que dói de latejar. E se eu acabar os meus dias, pobre, feia e só, chegue bem perto, porque eu vou estar de punho cerrado segurando bem forte ali na palma da minha mão toda essa crença que me faz seguir todos os dias sem lamentar. O meu baú de riquezas é pequeno, não cabem sacolas de luxo, sapatos de cristal ou páginas de revistas estampando rostos que não são meus. Sem champagnhe ou foi grãs (quem sabe uma média com leite e pão na chapa) vou teimando em sair da linha que insistem em me colocar. Eu não sou aquela que aparece sorrindo no jornal.

 Sou Maristela Branco Assis, tenho os pés cravados na terra, tenho raiz.